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Esta obra foi selecionada pela Bolsa Funarte de Reflexão Crítica e Produção Cultural para Internet
 
 
 
 

 

 
:: Quem é quem » Atrizes » Eliana Bueno
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A Gastão Gonçalves era uma rua sem saída, com muitas crianças. Minha irmã, as outras crianças e eu assistíamos ao Cinema de Rua, que volta e meia se apresentava lá, íamos ao cinema Mandaro e, às vezes, também ao Icaraí, ao Central, ao Imperial e até ao Rio Branco (Niterói tinha muitos cinemas), mas de teatro só conhecíamos o Grande Teatro Tupi e o Teatrinho Troll, pela televisão, além daquele do Colégio São Vicente de Paulo, onde aconteciam os espetáculos de fim de ano.

Mas montávamos pequenas encenações no quintal, pequenas peças de um ato, tiradas da revista Ave-Maria.


Às vezes até as mães vinham nos assistir. Quando estava já no curso Normal, a professora de Psicologia, depois Secretária de Educação, Fátima Cunha, nos levava ao teatro no Rio. E peguei a “mania de teatro”.
Assim que entrei na UFF soube que Sohail Saud estava escolhendo elenco pra uma peça. Se não me engano, era alguma coisa de Guilherme Figueiredo. Fui com minha amiga Percy Paraguassu, fizemos o teste de leitura e ela foi a escolhida, mas a peça não saiu.

Fui ainda a algumas reuniões no Departamento Cultural da Prefeitura de Niterói, onde assisti pela primeira vez a uma leitura de mesa – uma peça infantil sob a direção de Conrado Freitas, com Souhail Saud. Foi uma experiência impressionante e muito emocionante.
Foi então que minha irmã, Lia Bueno, recebeu um convite para participar de um grupo sob a responsabilidade do diretor Silva Ferreira. Fui também e, para minha surpresa, como assistente de direção, estava lá Nedyr de Barros, um rapaz que tinha ajudado a preparar uma das peças do Colégio São Vicente de Paulo.

O grupo se organizou, depois de um certo tempo passamos a ensaiar no Teatro Alvorada – mais tarde Leopoldo Fróes – e em seguida nos fixamos nas dependências do Centro Educacional de Niterói, localizado na avenida Amaral Peixoto e então sob a direção da visionária educadora Mirtes Wenzel.

Nedyr era um rapaz muito bonito e extremamente simpático e charmoso. Silva, como o chamávamos, era mais velho e, sem ser bonito, longe disso, era uma personalidade magnética. Tinha o poder mágico da transformação, um rosto plástico, uns olhos que falavam sozinhos, um gestual expressivo e uma voz… A essa altura ele era professor do Conservatório de Teatro do Estado da Guanabara ou da Escola Martins Pena, não sei ao certo, mas nós não sabíamos disso e nem ele falava sobre o assunto. Nunca soube o que ele fazia em Niterói, fazendo teatro com jovens que chegavam mais ou menos por acaso, a maioria sem vocação especial. Não sei se era pago por isso, talvez o fosse pelo Departamento Cultural da Prefeitura de Niterói. Estava lá, pontualmente, nos dias de ensaio, transformando um bando de garotos que, na maioria, queriam mais era namorar, num grupo de teatro.

Ele nos batizou como Os Provincianos, em homenagem a um outro grupo amador, de Porto Alegre, que tinha dirigido no Teatro São Pedro com muito sucesso.
Começamos a ensaiar “Nossa Cidade”, de Thorton Wilder, uma peça muito adequada às características de nosso grupo. A peça era muito boa, em termos absolutos. Éramos, se não esqueço ninguém, Sérgio Solano, que fazia o narrador, Themilton Tavares, Maria Margarida , Maria das Graças Vieira, Lia Bueno, Claudio Valente, De Caz, que nessa época ainda se chamava Antonio Carlos e que era nossa estrela, Evans de Brito, Lélio País e eu. Talvez esteja esquecendo alguém, éramos muitos, havia os sonoplastas, os ajudantes de tudo, os assistentes cativos, os de passagem…

Foi duro preparar a peça de três atos e muitos personagens. Lembro-me das cóleras negras de Silva e das inúmeras vezes em que nos disse que éramos nulos, que ele ia largar tudo, dissolver o grupo e desistir. Não tínhamos a disciplina necessária – aliás, nem sabíamos que tipo de comportamento se esperava de nós e saíamos das marcas quando ele estava, por exemplo, trabalhando com um ator. Foi “no tapa” que aprendemos que havia uma direção de ator e uma direção de espetáculo e que, no caso, ele fazia as duas coisas sozinho e ao mesmo tempo e que nós não cooperávamos…

Ficávamos arrasados. Aí entrava Nedyr, corrigia os erros, consolava os chorosos, dava uns tapinhas nas costas dos ofendidos e ia chamar Silva, que sempre voltava dizendo que da próxima não voltaria e que se arrependia de ter começado. Nós éramos, na maioria, universitários. Salvo uns poucos, trabalhávamos de dia, estudávamos à noite, fazíamos teatro aos fins de semana e, creio, também uma ou duas vezes durante a semana. Os ensaios acabavam tarde: havia o problema de como voltar pra casa, falta de transporte, falta de autorização familiar pra chegar depois de meia-noite, trabalho ou escola no dia seguinte de manhã… Teatro era mesmo uma loucura que dava dentro da gente.

Eu admirava Silva enormemente: bebia suas palavras, prestava atenção a seus gestos, corria pra ler tudo o que ele citava. Ele me impressionava muito também pela maneira com que nos tratava e aos pais e mães que apareciam para ver o que faziam seus filhos. Era sempre corretíssimo, quase formal e seduzia a todos, que saíam dos ensaios tranquilizados: seus filhos estavam em boas mãos. Mas eu supunha ver nos olhos dele e ouvir em sua voz uma ironia que não era propriamente inimizade, era distanciamento. Ele estava ali e não estava: estava em cena. Nós nos entregávamos a ele mas ele se mantinha distante.

Globalmente ele e eu nos dávamos bem. Eu era polida e disciplinada, mas ele não simpatizava comigo, me achava reprimida e intelectualizada demais, pouco vibrante. Disse-me pouco antes da estréia de “Nossa Cidade” que eu tinha conseguido construir um personagem de mãe numa linha levemente histérica e que funcionava, mas que se eu quisesse seguir carreira teria de ter outra atitude. .

Pessoalmente, achava nosso grupo muito bom, dramaticamente falando. Havia alguns talentos, diria mesmo muitos talentos, e um nível de conjunto, a meu ver, bastante satisfatório. Depois que a peça ficou de pé, os ensaios eram momentos muito bons, nos quais os que não estavam em cena podiam admirar o talento dos que evoluíam sob os refletores.

“Nossa Cidade” estreou no Teatro Municipal de Niterói, diria eu com sucesso. Nós estávamos felicíssimos e creio que Silva mesmo não ficou mal satisfeito. Depois fizemos “A Via Sacra”, de Henri Ghéon, que apresentamos na TV Rio, e com a qual excursionamos, apresentando-a até no leprosário de Itaboraí. A experiência de montar um espetáculo, com figurino, maquiagem, iluminação, cenário e público, nos responsabilizando por cartazes, programas e divulgação foi alguma coisa de exaltante. A experiência de montar um espetáculo na televisão ou num leprosário, onde éramos esperados como atores, provocava-nos uma excitação enorme: a excitação de fazer, de concluir um produto. Teatro não era mais só brincadeira, não era mais coisa de colégio.

Era um trabalho que tinha de ser bem feito, pois havia pessoas que contavam com isso.
No entanto, essas foram experiências às vezes muito difíceis ou extremamente cansativas, extenuantes mesmo. Os Provincianos era um grupo amador, mas tinha a direção de um homem que nos dirigia com rigor de profissional e com autoridade de patrão. Éramos submetidos à inteligência de Silva, à sua experiência, à sua concepção de teatro, à sua concepção de ator. E também a seu humor e a seus caprichos. Éramos mais um curso de teatro que um grupo, pois o diretor detinha sobre nós toda a autoridade.

No ano seguinte não voltei ao grupo e procurei me juntar a pessoas da faculdade que queriam fazer teatro. Foi então que fundamos o Laboratório. Ao núcleo original, que organizou o grupo e escolheu seu nome, foram-se juntando outras pessoas. Montamos “O Futuro está nos Ovos" (Jacques ou A Submissão)”, de Ionesco, depois “Prometeu Acorrentado”, de Ésquilo, e “A Peste”, de Renzo Casali. Outras peças foram encenadas por grupos que se formavam tanto dentro do grupo principal quanto paralelamente a ele.

Assim foi com “Rua do Lixo 24”, por exemplo, de Vital Santos, ou “Achtung”, uma colagem de textos concebida por Dema – Ademar Nunes – e Minoru Noyama.
José Carllos Gondim, Imara Reis, Antonio Carlos Pereira (depois Tonico Pereira), José Fernando Figueiredo, Vital dos Santos (Badu), Ademar Padron Nunes (Dema), Marisa Alvarenga, Marilene Calheiros, Maria Luiza Coimbra, Genésio Silveira da Costa, Iguatemy Coquinot (Tamico), Ronaldo Florentino, Gilson do Val, Ana Caillaux, Lucia Helena, Sandra Mansur, Mara Baraúna, Minoru Noyama e eu, dentre tantos outros que passavam pelo grupo, nele ficavam um tempo e depois iam embora ou então nele ficavam sem atuar nem exercer funções técnicas, nos animando com sua presença e seu olhar entusiasmado. Assim, muito nos esforçávamos para fazer o melhor possível naquele momento difícil do final dos 1960 e início dos ’70.

De fato, o teatro universitário oferecia muitos outros problemas e muitos outros desafios. Tínhamos total liberdade – e completa responsabilidade – quanto à concepção do espetáculo e em sua preparação nos jogávamos. Creio que estudei mais para participar da montagem das peças que para a preparação de meus cursos no Instituto de Letras. Trabalhávamos em grupo, da versão final da tradução à finalização da concepção do espetáculo, embora houvesse responsáveis por uma e outra tarefas. Gondim e Imara traduziram Ionesco, todo o grupo discutiu a adaptação da tradução já publicada de “Prometeu...” e não me lembro quem traduziu “A Peste”, que, se não me engano, lemos em espanhol. Gondim dirigiu “O Futuro...”, assessorado por Imara, ao passo que “Prometeu...” começou a ser dirigida por Luiz Alberto Conceição, que vinha d’A Comunidade, de Amir Haddad, e terminou sendo dirigida por Dema e Imara. “A Peste” foi dirigida por Dema.

Por outro lado, além das questões propriamente teatrais, tínhamos de nos organizar para fazer frente a nossas diferenças de personalidade e de modos de vida. Como havia líderes, evidentemente, mas não havia chefes, as questões deviam ser decididas em discussões por vezes intermináveis. Discussões acaloradas, muitas vezes mesmo extremamente difíceis, das quais saíamos cansadíssimos, mas nunca desencorajados. Estéreis umas, tão produtivas outras. E no dia seguinte lá estávamos todos, esquecidas ou pelo menos em suspenso as dissensões da véspera, buscando fazer o melhor espetáculo possível, buscando constituir o melhor grupo de teatro possível. O teatro que fizemos foi também uma experiência de tolerância, de convivência, de democracia. Nas raras vezes em que nos reencontramos, depois que nos separamos, é como se tivéssemos nos visto na véspera: recuperávamos, instantaneamente, a proximidade e os afetos – e também os desafetos, por que não? Nada de angelismo!
Amizades nasceram assim, do prazer e do fazer, do embate de idéias, do confronto de personalidades em que nos espelhávamos, em que discutíamos valores não só com o outro (com os outros), mas sobretudo conosco mesmos. Amizades para sempre, o maior patrimônio que, pessoalmente, acumulei durante esses anos.

E havia também o medo. Medo da polícia, do Dops, do Exército, da Marinha, da Barão de Mesquita, da Base Aérea do Galeão, dos estranhos que visitavam nossos ensaios no anfiteatro do Instituto de Letras, na rua Dr. Celestino, por vezes à 01h00 da manhã… Todos os medos do mundo.

Mas havia também o amor, as dores e exaltações do amor e da paixão. Quantos casais se fizeram e desfizeram no grupo? Quanto se chorou o fim de um amor e se riu pelo começo de um outro? Quantos modos de amar se experimentaram naqueles tempos? Qualquer maneira de amor vale a pena, cantávamos com Milton Nascimento. Quem viveu conosco essa passagem dos 1960-70 assumiu plenamente essa injunção e se descartou dos preconceitos que a Niterói desses tempos ainda abrigava. Queríamos dormir no sleeping bag. E sonhar. Todos os sonhos do mundo.

E os festivais – em Niterói, Teresopólis, São Carlos, Caruaru, Bom Jesus (Rio Grande do Sul), São José do Rio Preto, Arcozelo –, as viagens nos ônibus da Reitoria da UFF ou às vezes 24 horas naqueles comuns, com cadeiras que não recostavam (e sem banheiros), as noites nos dormitórios, o frio que não conhecíamos tanto no sul e em Arcozelo quanto nas noites de Caruaru, a travessia do São Francisco na balsa entre Sergipe e Alagoas, os prêmios... E os carnavais, pela Mem de Sá, de Niterói, lá na Avenida Amaral Peixoto, e pelo Salgueiro, na Presidente Vargas, para aproveitar a fantasia vermelho e branco... E os carnavais depois das vitórias do Brasil na Copa de ’70 e as discussões quanto à chamada ao voto nulo das eleições legislativas daquela década... Vivíamos política e poética sem distinções.

Esses tempos de sonho foram enriquecedores para todos nós. Se para alguns foram o início de uma carreira teatral – Tonico Pereira, Imara Reis, José Carlos Gondim, Mara Baraúna, dentre outros –, para todos nós foi um tempo de semeadura.
Foi esse, como dizia a canção, um tempo de guerra. Mas não um tempo sem sol: tínhamos vinte anos.

Eliana Bueno-Ribeiro é professora de Teoria Literaria e Literatura Comparada, pesquisadora-associada do Centro de Estudos Afrânio Coutinho da Faculdade de Letras da UFRJ. Ensaista, é autora de "Tonico Pereira. Um ator improvavel". São Paulo. Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2010? Coleção Aplauso.

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